saliva
(mário liz)
ela serve o chá. e eu penso se adoço ou amargo boca. ela cobre meus pés. e eu ajeito a touca. cubro as orelhas frente ao ar de julho. escolho meu pijama. sim, o meu velho pijama azul. ela finge que me olha. eu arrumo as calças e ligo a tevê. o canal perturba. mas eu finjo que gosto e ela finge que lê. se consola na fé inabalável. depois se faz de esfinge e me devora por fora. e eu não a decifro por dentro. amarga repetição. mesmo assim, não entendo. ela quer sempre mais e pede sempre tão menos. eu penso em gritar pois nunca ecoei seus terrenos. ela sorri e me mata com um beijo na testa. eu me testo se choro ou abandono a valsa na festa. eu não danço. e ela conduz. eu mais denso. ela de olhos crus. o arroz na panela-de-ferro. soltinho. ela em seu ritual me prepara. eu, o mesmo riso e a mesma cara. ela encera a estante e eu vejo a saúde do carro. ela me engraxa o sapato e fulmina um escarro. e o círculo impera. ela serve o chá. outra vez ela quer chá. eu quero quimera. eu penso que é já. o fim de uma era
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eu jogo as xícaras e ela se abisma de espanto. eu grito e me corto e ela evoca o seu santo. eu saio descalço e jogo a touca no lixo da casa. ela fala e me abala e o frio se esvai em brasa. ela olha o pijama que agora ao chão não me toca. eu vasto e desnudo esmurro a parede enquanto minh’alma se choca. ela com sede e espasmo parece engolir o seu choro. depois ela tosse e pranteia o seu desaforo. por fim, o imenso silêncio me toma. e ela quieta, também em coma. aí eu me lembro da saliva que era alimento. e ela, espumosa, se verte em lamentos. eu cego-insano sigo e me apego naquela boca de espuma. ela chora e as lágrimas se dão à saliva, uma a uma. então meu corpo se acende e uma fera me rasga a espinha. e ela salgada de choro e de cuspe me olha e se mostra querendo ser minha. e o círculo se quebra. ela serve o vinho e o seu corpo é a taça. eu bebo e me farto e me dou à língua devassa. ela grita e contorce e dá colo à minha fera de olhos famintos. eu nela ando, corro e ecôo: agora em todos recintos.